sexta-feira, 20 de maio de 2011

O CORVO TRADUÇÃO DE GONDIN DA FONSECA

CERTA VEZ, quando, à meia-noite eu lia, fraco, extenuado, um livro antigo e
singular, sobre doutrinas do passado, meio dormindo - cabeceando -, ouvi uns
sons, trêmulos como se teve, bem de leve, alguém batesse à minha porta. É um
visitante", murmurei, "que bate, leve, à minha porta, Apenas isso e nada mais."


Bem me recordo. Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes.
Morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes . Eu nos meus livros
procurava - ansiando as horas matinais - um meio (em vão) de amortecer fundas
saudades de Lenora - bela adorada, a quem, no céu, os querubins chamam
Lenora aqui ninguém chamara mais.


E das cortinas cor de sangue, o arfar soturno e brando e vago
causou-me horror nunca sentido - horror fantástico e pressago
Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir: " alguém que bate, alguém que bate à minha porta,
algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta; é isso, é isso e nada mais.

Fortalecido já por fim, brado perdendo a hesitação:
"Senhor! Senhora! quem sejais, 'se demorei peço perdão Eu dormitava, fatigado, e
tão baixinho me chamais, bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha
porta que não é fácil escutar." Porém só vejo, abrindo a porta, a escuridão e nada
mais.


Perquiro a treva longamente. estarrecido, amedrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonha
Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.
Uma palavra apenas corta a noite plácida: - "Lenora." -
Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me Lenora. Isto somente - e
nada mais.


Para o meu quarto eu volto enfim - sentindo n'alma estranho ardor
e novamente ouço bater, ouço bater com mais vigor, "Vêm da janela", presumi,
"estes rumores anormais. Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
E o vento, o vento e nada mais!"


Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de um corvo grande, ave
ancestral, dos tempos bíblicos - Sem cortesias, sem parar, batendo as asas
triunfais, ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto quedar
sombrio e nada mais.


EU estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
Tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno. Sem crista, embora" -
ponderei -' "embora ancião dos teus iguais és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho
errante de Plutão! Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?"
E o corvo disse: "Nunca mais.


Fiquei surpreso - pois que nunca imaginei fosse possível de um corvo tal
resposta, embora incerta, incompreensível, bem, que em tempo algum, em noite
alguma entre mortais viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta e
declarar (ao alto de um busto, erguido acima de uma porta) que se chamava
"Nunca mais


Porém o Corvo, solitário, essas palavras só murmura, que nelas refletindo uma
alma cheia de amargura. Depois concentra-se e nem move - inerte sobre os meus
umbrais - só pena. Exclamo então: "Muitos amigos me fugiram...
Tu fugirás pela manhã, como os meus sonhos me fugiram. .
Responde o corvo: "Oh! Nunca mais."


Pasmo ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,
"Certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.
Ouviu-a acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais
hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho, chorar as ilusões com esse
lúgubre estribilho de - "nunca mais! oh! nunca mais!".


De novo, foram-se mudando as minhas mágoas num sorriso.
Então rodei uma poltrona, olhei o Corvo, de improviso, estofos mergulhei,
formando hipóteses mentais
Sobre as secretas intenções que essa medonha ave agoureira tinha,
grasnando "Nunca mais.


Mil coisas pressupus. . . Não lhe falava, mas sentia me abrasava o coração o duro
olhar da ave sombria. E assim fiquei, num devaneio, em deduções conjecturais,
cabeça reclinando - à luz da lâmpada fulgente nessa almofada de veludo, em que
ela, agora - à luz fulgente -não mais descansa - ah! nunca mais.


Subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário, pousassem,
balançando um invisível incensário. infeliz" - eu exclamei. - "Deus apiedou-se dos
teús ais!
Calma-te e domina essas saudades de Lenora! o nepente benfazejo! Olvida a
imagem de Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta!" - brado. "Anjo do mal, ave ou demônio irreverente que a tempestade,
ou Satanás, aqui lançou tragicamente, e que te vês, soberbo, e só, nestes
desertos areais, nesta mansão de eterno horror! Fala! responde ao certo! Existe
bálsamo em Galaad? Existe? Fala, o Corvo! Fala!"
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta!" - brado. "Anjo do mal! Ave ou demônio irreverente dize, por Deus, que
está nos céus, dize! eu to peço humilde dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos
páramos astrais, poderá ver, um dia, ainda, a bela e cândida Lenora, amada minha,
a quem, no céu, os querubins chamam Lenora
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Seja essa frase o nosso adeus" - grito, de pé, "Vai-te! Regressa à tempestade, à
noite escura de Plutão. Não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!
Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse busto junto à porta!
Não rasgues mais meu coração! Piedade! Sai de sobre a porta e o corvo disse:
"Nunca mais.


E não saiu! e não saiu! Ainda agora se conserva
pousado, trágico e fatal, no busto branco de Minerva.
Negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!
Por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua…
E a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que não há de erguer-se,
"Nunca mais".

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