terça-feira, 24 de maio de 2011

EU TENHO UM SONHO MARTIN LUTHER KING

"Eu estou contente em unir-me com vocês no dia que entrará para a história como a maior demonstração pela liberdade na história de nossa nação. Cem anos atrás, um grande americano, na qual estamos sob sua simbólica sombra, assinou a Proclamação de Emancipação. Esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre. Cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação. Cem anos depois, o Negro vive em uma ilha só de pobreza no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos depois, o Negro ainda adoece nos cantos da sociedade americana e se encontram exilados em sua própria terra. Assim, nós viemos aqui hoje para dramatizar sua vergonhosa condição. De certo modo, nós viemos à capital de nossa nação para trocar um cheque. Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e a Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória para a qual todo americano seria seu herdeiro. Esta nota era uma promessa que todos os homens, sim, os homens negros, como também os homens brancos, teriam garantidos os direitos inalienáveis de vida, liberdade e a busca da felicidade. Hoje é óbvio que aquela América não apresentou esta nota promissória. Em vez de honrar esta obrigação sagrada, a América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com "fundos insuficientes". Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. Nós nos recusamos a acreditar que há capitais insuficientes de oportunidade nesta nação. Assim nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça. Nós também viemos para recordar à América dessa cruel urgência. Este não é o momento para descansar no luxo refrescante ou tomar o remédio tranqüilizante do gradualismo. Agora é o tempo para transformar em realidade as promessas de democracia. Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo. Esses que esperam que o Negro agora estará contente, terão um violento despertar se a nação votar aos negócios de sempre. Mas há algo que eu tenho que dizer ao meu povo que se dirige ao portal que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquistar nosso legítimo direito, nós não devemos ser culpados de ações de injustiças. Não vamos satisfazer nossa sede de liberdade bebendo da xícara da amargura e do ódio. Nós sempre temos que conduzir nossa luta num alto nível de dignidade e disciplina. Nós não devemos permitir que nosso criativo protesto se degenere em violência física. Novamente e novamente nós temos que subir às majestosas alturas da reunião da força física com a força de alma. Nossa nova e maravilhosa combatividade mostrou à comunidade negra que não devemos ter uma desconfiança para com todas as pessoas brancas, para muitos de nossos irmãos brancos, como comprovamos pela presença deles aqui hoje, vieram entender que o destino deles é amarrado ao nosso destino. Eles vieram perceber que a liberdade deles é ligada indissoluvelmente a nossa liberdade. Nós não podemos caminhar só. E como nós caminhamos, nós temos que fazer a promessa que nós sempre marcharemos à frente. Nós não podemos retroceder. Há esses que estão perguntando para os devotos dos direitos civis, "Quando vocês estarão satisfeitos?" Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial. Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, pesados com a fadiga da viagem, não poderem ter hospedagem nos motéis das estradas e os hotéis das cidades. Nós não estaremos satisfeitos enquanto um Negro não puder votar no Mississipi e um Negro em Nova Iorque acreditar que ele não tem motivo para votar. Não, não, nós não estamos satisfeitos e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza. Eu não esqueci que alguns de você vieram até aqui após grandes testes e sofrimentos. Alguns de você vieram recentemente de celas estreitas das prisões. Alguns de vocês vieram de áreas onde sua busca pela liberdade lhe deixaram marcas pelas tempestades das perseguições e pelos ventos de brutalidade policial. Você são o veteranos do sofrimento. Continuem trabalhando com a fé que sofrimento imerecido é redentor. Voltem para o Mississippi, voltem para o Alabama, voltem para a Carolina do Sul, voltem para a Geórgia, voltem para Louisiana, voltem para as ruas sujas e guetos de nossas cidades do norte, sabendo que de alguma maneira esta situação pode e será mudada. Não se deixe caiar no vale de desespero. Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho que um dia esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de sua crença - nós celebraremos estas verdades e elas serão claras para todos, que os homens são criados iguais. Eu tenho um sonho que um dia nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos dos descendentes de escravos e os filhos dos descendentes dos donos de escravos poderão se sentar junto à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho que um dia, até mesmo no estado de Mississippi, um estado que transpira com o calor da injustiça, que transpira com o calor de opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia, no Alabama, com seus racistas malignos, com seu governador que tem os lábios gotejando palavras de intervenção e negação; nesse justo dia no Alabama meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos. Eu tenho um sonho hoje! Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta. Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação em uma bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, para ir encarcerar juntos, defender liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livre. Este será o dia, este será o dia quando todas as crianças de Deus poderão cantar com um novo significado. "Meu país, doce terra de liberdade, eu te canto. Terra onde meus pais morreram, terra do orgulho dos peregrinos, De qualquer lado da montanha, ouço o sino da liberdade!" E se a América é uma grande nação, isto tem que se tornar verdadeiro. E assim ouvirei o sino da liberdade no extraordinário topo da montanha de New Hampshire. Ouvirei o sino da liberdade nas poderosas montanhas poderosas de Nova York. Ouvirei o sino da liberdade nos engrandecidos Alleghenies da Pennsylvania. Ouvirei o sino da liberdade nas montanhas cobertas de neve Rockies do Colorado. Ouvirei o sino da liberdade nas ladeiras curvas da Califórnia. Mas não é só isso. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia. Ouvirei o sino da liberdade na Montanha de Vigilância do Tennessee. Ouvirei o sino da liberdade em todas as colinas do Mississipi. Em todas as montanhas, ouviu o sino da liberdade. E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós deixarmos ele soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: "Livre afinal, livre afinal. Agradeço ao Deus todo-poderoso, nós somos livres afinal."

domingo, 22 de maio de 2011

VENHA VER O PÔR-DO-SOL Lygia Fagundes Telles

VENHA VER O PÔR-DO-SOL
Lygia Fagundes Telles

Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.

Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
Minha querida Raquel.
Ela encarou o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância! Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. Hein?!
Ah, Raquel... e ele tomou a pelo braço. Você, está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado... Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
Podia ter escolhido um outro lugar, não? Abrandara a voz. E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo acrescentou apontando as crianças na sua ciranda.
Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro.
Ricardo e suas idéias. E agora? Qual o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
Conheço bem tudo isso, minha gente está, enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo.
Ela encarou o um instante. Evergou a cabeça para trás numa risada.
Ver o pôr do sol!... Ali, meu Deus... Fabuloso, fabuloso!... Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério...
Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta.
Raquel, minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura...
E você acha que eu iria?
Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um pouco numa rua afastada... disse ele, aproximando se mais. Acariciou lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento. Você fez bem em vir.
Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar?
Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende.
Mas eu pago.
Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver um passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava.
Foi um risco enorme, Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero só ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida.
Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
É um risco enorme, já disse. Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quan¬tas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo.
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos, medalhões de retratos esmaltados.
É imenso, hein? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, que deprimente exclamou ela, atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. Vamos embora, Ricardo, chega.
Ali, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da noite, está no crepúsculo, nesse meio tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja, e você se queixa.
Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou lhe a mão.
Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo.
É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais.
Ele é tão rico assim?
Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...
Ele apanhou um pedregulho e fechou o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo.
Sabe, Ricardo, acho que você é mesmo meio tantã... Mas apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Quando penso, não entendo como agüentei tanto, imagine, um ano!
É que você tinha lido A Dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora?
Nenhum respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve se para ler a inscrição de uma laje des¬pedaçada: minha querida esposa, eternas saudades leu em voz baixa. Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido.
Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda , o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou se mais a ele. Bocejou.
Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim. Deu lhe um rápido beijo na face. Chega, Ricardo, quero ir embora.
Mais alguns passos...
Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! Olhou para trás. Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
A boa vida te deixou preguiçosa? Que feio lamentou ele, impelindo a para a frente. Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
Sua prima também?

Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos... Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas... Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
Vocês se amaram?
Ela me amou. Foi a única criatura que... Fez um gesto. Enfim, não tem importância.
Raquel tirou lhe o cigarro, tragou e depois devolveu o.
Eu gostei de você, Ricardo.'
E eu te amei.. E te amo ainda. Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu.
Esfriou, não? Vamos embora.
Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta: de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a ca tacumba.
Ela entrou na ponta dós pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
Que triste que é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancólico.

Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? Mas já disse que o que mais amo neste cemitério é precisamente este abandono, esta solidão.
As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semiobscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento.
E lá embaixo?
Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá la. A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo se no topo da escada, ela inclinou se mais para ver melhor.
Todas essas gavetas estão cheias?
Cheias?... Só as que têm o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado embutido no centro da gaveta.
. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz.
Vamos, Ricardo, vamos.
Você está com medo.
Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou se para o medalhão frouxamente iluminado.
A priminha Maria Emília. Lembro me até do dia em que tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e veio se exibir, estou bonita? Estou bonita?... Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente. Não é que fosse bonita, mas os olhos... Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo se para não esbarrar em nada.
Que frio faz aqui. E que escuro, não estou en¬xergando !
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu o à companheira.
Pegue, dá para ver muito bem... Afastou¬-se para o lado. Repare nos olhos.
Mas está tão desbotado, mal se vê que é uma moça... Antes da chama se apagar, aproximou a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente. Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil e oitocentos e falecida... Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel. Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos ! Seu menti...
Um baque metálico decepou lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso – meio inocente, meio malicioso.
Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso! Brincadeira mais cretina! exclamou ela, subindo rapidamente a escada. Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou a da fechadura e saltou para trás.
Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! ordenou, torcendo o trinco. Detesto este tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta tem uma frincha na porta. Depois vai se afastanto devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente! Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou se a ela, dependurando se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra...
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
Boa noite, Raquel..
Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá lo. - Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos! exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. Não, não...
Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando, as duas folhas escancaradas.
Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se, entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida.
Não..
Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido.: No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de, um animal sendo, estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora, qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

sábado, 21 de maio de 2011

O discurso final do filme "O Grande Ditador" Charles Chaplin

O discurso final do filme
"O Grande Ditador"


"Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo - não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens, levantou no mundo as muralhas do ódio e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio nos aproximou. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem, um apelo à fraternidade universal, a união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora. Milhões de desesperados: homens, mulheres, criancinhas, vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que podem me ouvir eu digo: não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia, da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais, que vos desprezam, que vos escravizam, que arregimentam vossas vidas, que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos. Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão. Não sois máquina. Homens é que sois. E com o amor da humanidade em vossas almas. Não odieis. Só odeiam os que não se fazem amar, os que não se fazem amar e os inumanos.
Soldados! Não batalheis pela escravidão. Lutai pela liberdade. No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens. Está em vós. Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas; o poder de criar felicidade. Vós o povo tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo, um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam. Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão. Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e a prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos. Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam. Estamos saindo da treva para a luz. Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah. A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah. Ergue os olhos."

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O CORVO TRADUÇÃO DE GONDIN DA FONSECA

CERTA VEZ, quando, à meia-noite eu lia, fraco, extenuado, um livro antigo e
singular, sobre doutrinas do passado, meio dormindo - cabeceando -, ouvi uns
sons, trêmulos como se teve, bem de leve, alguém batesse à minha porta. É um
visitante", murmurei, "que bate, leve, à minha porta, Apenas isso e nada mais."


Bem me recordo. Era em dezembro. Um frio atroz, ventos cortantes.
Morria a chama no fogão, pondo no chão sombras errantes . Eu nos meus livros
procurava - ansiando as horas matinais - um meio (em vão) de amortecer fundas
saudades de Lenora - bela adorada, a quem, no céu, os querubins chamam
Lenora aqui ninguém chamara mais.


E das cortinas cor de sangue, o arfar soturno e brando e vago
causou-me horror nunca sentido - horror fantástico e pressago
Então, fiquei (para acalmar o coração de sustos tais)
a repetir: " alguém que bate, alguém que bate à minha porta,
algum noturno visitante, aqui batendo à minha porta; é isso, é isso e nada mais.

Fortalecido já por fim, brado perdendo a hesitação:
"Senhor! Senhora! quem sejais, 'se demorei peço perdão Eu dormitava, fatigado, e
tão baixinho me chamais, bateis tão manso, mansamente, assim de noite à minha
porta que não é fácil escutar." Porém só vejo, abrindo a porta, a escuridão e nada
mais.


Perquiro a treva longamente. estarrecido, amedrontado,
sonhando sonhos que, talvez, nenhum mortal haja sonha
Silêncio fúnebre! Ninguém. De visitante nem sinais.
Uma palavra apenas corta a noite plácida: - "Lenora." -
Digo-a em segredo, e num murmúrio, o eco repete-me Lenora. Isto somente - e
nada mais.


Para o meu quarto eu volto enfim - sentindo n'alma estranho ardor
e novamente ouço bater, ouço bater com mais vigor, "Vêm da janela", presumi,
"estes rumores anormais. Mas eu depressa vou saber donde procede tal mistério.
E o vento, o vento e nada mais!"


Eis, de repente, abro a janela, e esvoaça então, vindo de um corvo grande, ave
ancestral, dos tempos bíblicos - Sem cortesias, sem parar, batendo as asas
triunfais, ele, com ar de grão-senhor, foi, sobre a porta do meu quarto quedar
sombrio e nada mais.


EU estava triste, mas sorri, vendo o meu hóspede noturno
Tão gravemente repousado, hirto, solene e taciturno. Sem crista, embora" -
ponderei -' "embora ancião dos teus iguais és medroso, ó Corvo hediondo, ó filho
errante de Plutão! Que nobre nome é acaso o teu, no escuro império de Plutão?"
E o corvo disse: "Nunca mais.


Fiquei surpreso - pois que nunca imaginei fosse possível de um corvo tal
resposta, embora incerta, incompreensível, bem, que em tempo algum, em noite
alguma entre mortais viram um pássaro adejar, voando por cima de uma porta e
declarar (ao alto de um busto, erguido acima de uma porta) que se chamava
"Nunca mais


Porém o Corvo, solitário, essas palavras só murmura, que nelas refletindo uma
alma cheia de amargura. Depois concentra-se e nem move - inerte sobre os meus
umbrais - só pena. Exclamo então: "Muitos amigos me fugiram...
Tu fugirás pela manhã, como os meus sonhos me fugiram. .
Responde o corvo: "Oh! Nunca mais."


Pasmo ao varar o atroz silêncio uma resposta assim tão justa,
"Certo, ele só sabe essa expressão com que me assusta.
Ouviu-a acaso, de algum dono, a quem desgraças infernais
hajam seguido, e perseguido, até cair nesse estribilho, chorar as ilusões com esse
lúgubre estribilho de - "nunca mais! oh! nunca mais!".


De novo, foram-se mudando as minhas mágoas num sorriso.
Então rodei uma poltrona, olhei o Corvo, de improviso, estofos mergulhei,
formando hipóteses mentais
Sobre as secretas intenções que essa medonha ave agoureira tinha,
grasnando "Nunca mais.


Mil coisas pressupus. . . Não lhe falava, mas sentia me abrasava o coração o duro
olhar da ave sombria. E assim fiquei, num devaneio, em deduções conjecturais,
cabeça reclinando - à luz da lâmpada fulgente nessa almofada de veludo, em que
ela, agora - à luz fulgente -não mais descansa - ah! nunca mais.


Subitamente o ar se adensou, qual se em meu quarto solitário, pousassem,
balançando um invisível incensário. infeliz" - eu exclamei. - "Deus apiedou-se dos
teús ais!
Calma-te e domina essas saudades de Lenora! o nepente benfazejo! Olvida a
imagem de Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta!" - brado. "Anjo do mal, ave ou demônio irreverente que a tempestade,
ou Satanás, aqui lançou tragicamente, e que te vês, soberbo, e só, nestes
desertos areais, nesta mansão de eterno horror! Fala! responde ao certo! Existe
bálsamo em Galaad? Existe? Fala, o Corvo! Fala!"
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Profeta!" - brado. "Anjo do mal! Ave ou demônio irreverente dize, por Deus, que
está nos céus, dize! eu to peço humilde dize a esta pobre alma sem luz, se lá nos
páramos astrais, poderá ver, um dia, ainda, a bela e cândida Lenora, amada minha,
a quem, no céu, os querubins chamam Lenora
E o corvo disse: "Nunca mais."


"Seja essa frase o nosso adeus" - grito, de pé, "Vai-te! Regressa à tempestade, à
noite escura de Plutão. Não deixes pluma que recorde essas palavras funerais!
Mentiste! Sai! Deixa-me só! Sai desse busto junto à porta!
Não rasgues mais meu coração! Piedade! Sai de sobre a porta e o corvo disse:
"Nunca mais.


E não saiu! e não saiu! Ainda agora se conserva
pousado, trágico e fatal, no busto branco de Minerva.
Negro demônio sonhador, seus olhos são como punhais!
Por cima, a luz, jorrando, espalha a sombra dele, que flutua…
E a alma infeliz, que me tombou dentro da sombra que não há de erguer-se,
"Nunca mais".

sábado, 7 de maio de 2011

07/05

Não queria ter a sorte
Mais diversa ou derradeira
Sendo a vida corriqueira
A palavra reconforte,

Mas no fundo em novo corte
Ao sentir esta ladeira
Esta sorte derradeira
Traz o medo que se aborte.

Não mereço alguma luz
Nem tampouco o quanto pus
Nestes versos sem certeza,

O que venha na verdade
Possa ser em claridade,
Mas trará nova surpresa.